O antigo Clube de Leitura em Voz Alta deu lugar ao Coro de Leitura em Voz Alta. Tem normalmente um periodicidade quinzenal e acontece na Biblioteca de Alcochete.

Os objectivos continuam a ser os mesmos; promover o prazer da leitura partilhada; a forma passou a ser outra.

2011.10.25 - Memória

Cristina
A história do contador de histórias in Histórias que me Contaste Tu (Lisboa, Assírio & Alvim, 1999, pp. 11-13)
Manuel António Pina



Uma vez, de manhãzinha (contou-me o Escaravelho) a Sara e a Ana iam de mãos dadas para a escola. Ou talvez não fosse de manhã. Talvez fosse depois do almoço, já não me lembro. Aliás, talvez (o Escaravelho Contador de Histórias hesitou um pouco) não fossem a Sara e a Ana, talvez fossem, afinal, o Rui e a Ana, indo de mãos dadas para a escola... Ou talvez a Sara e a Inês... Ou o Rui e a Márcia... Já não tenho a certeza absoluta. Pensando bem, nem sequer estou seguro de que fossem para a escola. Se calhar iam brincar para o jardim...
O que eu sei é que, uma vez, de manhãzinha (ou então depois do almoço...), duas meninas, ou dois meninos, ou uma menina e um menino - já foi há tanto tempo, como é que hei-de lembrar-me?.. -, iam para um sítio qualquer (também não estou certo se iam de mãos dadas ou não, mas acho que iam de mãos dadas...)
Ou era apenas um menino? Ou era apenas uma menina? Ou não iam para parte nenhuma, e estavam parados no passeio, diante da janela de um rés-do-chão, vendo, numa sala iluminada (talvez, afinal, fosse à noite, depois do jantar), muitas pessoas sentadas a ver televisão, e um gato amarelo a dormir enrolado em cima da televisão? E as pessoas?, estariam a ver televisão ou a ver o gato amarelo enrolado em cima da televisão? Também já não tenho a certeza...
Não há dúvida que eu não sei esta história. Deve ser outra pessoa quem a sabe... Como é que eu posso contar uma história que eu não sei? Vou ver se me lembro de alguma que eu saiba...

Paula
A menina que queria ser maçã in Estranhões e Bizarrocos
José Eduardo Agualusa















Quando perguntaram à Joaninha o que é que ela queria ser quando fosse grande (há sempre um dia em que um adulto nos faz essa pergunta), ela não hesitou:
- Quando for grande quero ser maçã!
Disse aquilo com tanta convicção que a mãe se assustou:
- Maçã?
A maior parte das crianças quer ser: astronauta, médico, corredor de automóveis, futebolista, cantor, presidente. Há algumas respostas mais originais: “Quero ser solteiro”, confessou o filho de uma amiga minha. Conheço uma menininha que foi ainda mais ambiciosa:
- Quando for grande quer ser feliz.
Mas maçã? Joaninha, meu amor, maçã porquê? A pequena encolheu os ombros: “são tão lindas”. Passaram-se os anos e a mãe pensou que ela se tinha esquecido daquilo. Mas não. No dia em que entrou para a escola a professora fez a todos os meninos a mesma pergunta:
- Ora então vamos lá saber o que é que vocês querem ser quando forem grandes... Astronauta. Piloto de Fórmula 1. Cantora. Futebolista. Barbie (há muitas meninas que querem ser a Barbie). Médica. Modelo. Actriz. E tu, Joaninha?
- Eu quero ser maçã!
Risos. Os outros meninos começaram a fazer troça dela:
- Maçã raineta! Maça raineta!...
- Se o Joaninha pode ser uma maçã, senhora professora, eu quero ser um avião...
Ela nem fazia caso. Quando crescesse havia de ser uma maçã, sim, uma maçã verde, luminosa, tão perfumada como uma manhã de primavera.
Poucas vezes, porém, conseguimos cumprir os nossos sonhos. Joaninha transformou-se numa mulher bonita, estudou, e fez-se professora. Era uma boa professora. Só quem conseguisse olhar para dentro dela poderia saber que, bem lá no fundo do seu coração, Joaninha sentia ainda aquela grande vontade de se tornar maçã. O tempo passou – o tempo, aliás, está sempre a passar, nós é que nem sempre damos pela sua passagem. O tempo passou, portanto, e Joaninha envelheceu. Não casara, não tinha filhos, envelheceu sozinha. Foi numa tarde de Outono. As árvores tinham perdido todas as folhas. O sol, cansado, com aquela cor macia que tem o mel, desaparecia no horizonte. Joaninha estava a dormir numa cadeira de baloiço, na varanda da sua casa, quando apareceu um anjo e a levou. Ela não percebeu logo onde estava. Foi preciso que Deus lhe tocasse nos ombros com a ponta dos dedos:
- Acorda minha filha – disse-lhe Deus -, já chegaste.
Joaninha abriu os olhos e viu o que já antes via com os olhos fechados: os anjos passeando num grande jardim, os peixes flutuando no ar, juntamente com os pássaros, e aquele velho de barbas brancas, ao seu lado, sorrindo como só Deus sabe sorrir.
- Meu Deus – perguntou-lhe – porque não me deixaste ser maçã?
- Ser maçã é difícil, Joaninha – disse-lhe Deus – É preciso crescer muito para se ser uma boa maçã. Tu cresceste. Agora, sim, serás maçã.
Alguns anos depois um menino descobriu no pomar da casa dos seus avós uma maçã de um brilho intenso. Cheirou-a: cheirava a manhãs lavadas, cheirava a primavera, era um cheiro que se colava aos dedos. O menino comeu a maçã e sentiu-se feliz. Naquela tarde disse à avó:
- Sabes, acho que quando for grande quero ser maçã!

Paula, Daniel, Delfina, Alexandra F.
A história da carochinha
Popular
















Vasco, João, Alexandra J., Vitória
TêVê-Memória, com o professor Vasco José Saraiva
Rapsódia de contos extraídos da Caderneta de Cromos de Nuno Markl









Teresa e Helena R.
Borboleta in Enciclopédia da Música com Bicho
Companhia de Música Teatral


Descansa no colo da rosa
borboleta na verdura
vai formosa, insegura,
bate as asas, voa e pousa
e parte de novo à procura.

Com umas horas apenas
vai confusa, vai com pressa,
está-se a passar das antenas,
tropeça nas açucenas,
ansiosa, recomeça,
Viu-se no orvalho das flores,
(os espelhos do jardim)


Não me lembro de ser assim,
não me lembro de ter cores,
não me lembro bem de mim...

já deu voltas, longe, perto,
está cansada, não desiste...
e a dúvida persiste.
(ninguém sabe bem ao certo
de onde vem e porque existe)

Procurou alguém mais velho
que lhe desse um bom conselho
Passa um pássaro com pressa,
não tem tempo para parar.
Passa uma lesma e essa
vem muito mais devagar.

-Como vai, ó Dona Lesma?
-Devagar, eu me arroliço
E você, como vai isso?
-Complicado, estou na mesma
vai cá dentro um reboliço...
- Pode ser, tudo faz crer,
a crise de identidade.
Talvez passe com a idade,
mas quem pode esclarecer
é o doutor que há na cidade.

Borboleta voa, voa,
vai ao doutor a Lisboa.
Sem parar levou um dia,
já chegou ao consultório
de Psicoentomologia.
Ao de leve bate à porta:

- Com licença, não se importa?
- Pode entrar, se faz favor.
O meu nome é senhor Doutor.
- Boa tarde, como está?
- Eu estou bem, mas é normal,
sou o doutor, afinal.
Quanto a si já vamos lá,
diga lá a sua graça.
- Não percebo o que se passa.
- O seu nome, o que lhe chamam?
- O meu nome é Borboleta
- Isso vê-se muito bem...
Apelidos também tem?
- D'asa às cores, parte da mãe
e pelo pai é Cara Preta.
- É a primeira consulta...
- Vamos lá ver se resulta.
- Não duvide, creia em mim,
já vi muita gente assim.
Fiz cursos, doutoramentos,
tenho técnicas, talentos,
sou um grande especialista,
o meu nome vem na lista...
Basta-me um olhar atento
e o diagnóstico é um momento
O seu caso é grave!
- Mas doutor, como é que sabe?
Ainda nem sequer falei!
- Esse é o primeiro sintoma,
a seguir entra-se em coma,
e depois "aqui d'El Rei".
- Mas doutor, não quer ouvir?
Eu gostava de discutir...
- Vá lá, diga trinta e três
- Só sei contar até dez!
- Estou a ver... respire fundo,
bata as asas devagar,
três batidas por segundo
está normal, a funcionar.
- Doutor, deixe-me falar,
não é disso que eu me queixo!
- Fale lá então que eu deixo,
mas deixe-me que lhe diga
está tudo bem com a barriga
com as asas e as antenas,
pelo que nos resta apenas
o cenário problemático:
Ser caso psicossomático.
De que se queixa afinal?
- É uma confusão geral
Não sei bem quem é que eu sou,
não sei bem para onde vou,
vejo coisas que já vi
sem nunca ter estado ali.
- Ora bem, não é neurose,
psicose também não,
isso foi metamorfose
que lhe deu já percebi!
- Meta-quê?
- Me-ta-mor-fo-se!

Borboleta, Borboleta
D'Asa às cores e cara preta
Tu já foste uma lagarta
verde, gorda, feia e farta.


Cecília
excerto de O Esplendor da Vida
Sveva Modignani









A experiência não se pode transferir. Os jovens precisam de bater com a cabeça na parede. Sentir a dor no coração. (...)



António Gil
Brandura de Costumes in O Mundo dos Outros (1950)
José Gomes Ferreira


A memória é feita de factos e de muita imaginação. Mas é a recordação dos factos do dia-a-dia que mais fazem regressar memórias e esta história de meados do século passado traz-nos situações curiosas à memória. Espero que gostem.








Brandura de costumes

Certo dia, um deus zombeteiro grudou à pressa estas palavras “brandura dos nossos costumes”, despejou-as na tinta das Redacções e pôs-se a esfregar as mãos de galhofa quando viu os exploradores do orgulho fácil atirá-las, através dos jornais, para o comércio nacional do lugar-comum, como moedas tão gostosas, de boca em boca.
Às orelhas desprecavidas soavam como sinal de prova duma civilização subtilmente especial com maciezas de penugens de pombas, convívios de almofadas, afagos de papos de rola, olhos besuntados de melaço, gestos de vaselina, pássaros maviosos com grinaldas nos bicos, beijinhos de mãe, em suma, a substituírem o quadro ambiente real, menos atraidor de lisonjas e mais arranhado, duma insociabilidade de lixa, com unhas hostis, cacos de garrafas nos muros e facadas nas tripas dos infames que se atrevem a recusar o testemunho fraternal dum copo de vinho.
Brandura dos nossos costumes.
Que significará, em verdade, esta locução? Dessoramento, fraqueza letal, debilidade, atonia, músculos de algodão em rama? Ou, antes, certo pendor para encolher os ombros diante da tirania e da injustiça, sem outra reacção às ofensas que o espumar de retaliações teóricas, sentindo na boca o espectro da baba longínqua da sagrada sanha de Nuno Álvares e outros defuntos retóricos da nossa gloriosa família comum?
Não sei. Um misto de tudo, talvez, sem lhe faltar o relaxamento, a preguiça e até - porque não? - certa bondade mole vinda lá do fundo da convicção egoísta de que não vale a pena sombrear a vida, já de si tão curta e que, afinal, só o abençoado aborrecimento português consegue tornar morosamente longa.
A que vêm, porém, todas estas congeminações, digam-me lá? A propósito da cena do elevador do Lavra?
Estranho episódio, na realidade, embora tão correntio que nem sei se mereça o tempo que vou perder a contá-lo.
Mas vá lá...
Era uma vez um homúnculo de bigodes abespinhados e olhos ariscos que estava a comprar o seu bilhete na plataforma dum elevador. Nisto, um cavalheiro açodado e cheio de embrulhos passou-lhe rente e, por inadvertência, atropelou-o com um encontrão esbaforido.
Tanto bastou para que a exclamação estoirasse, imediata e total:
- Arre que é besta!
O cavalheiro dos embrulhos não retrucou logo. Adquiriu por sua vez um bilhete, entrou com lentidão e escolheu um bom lugar, mesmo fronteiro ao banco onde o homúnculo de bigode eriçado insistia, risonhamente acre, para os circunstantes, à procura dum apoio de olhos:
- Sempre há cada cavalgadura neste mundo!
Só depois de bem acomodado e bem tossido o cavalheiro dos embrulhos se comprouve em retorquir-lhe com voz de eco atrasado:
- Cavalgadura será ele e toda a sua família. Percebeu? E toda a sua família.
Uma nuvem de borrasca iminente pesou então negra, no elevador. Alguns passageiros levantaram-se no presságio da comédia habitual do desagravo, prontos para intervir num torvelinho de apóstrofes e de alvoroto (“Larguem-me! Larguem-me! Que eu mato aquele malandro!”); ao passo que as damas se preparavam para aproveitar a ocasião de serem femininas e soltarem os graciosos gritinhos da praxe que tão bem lhes ficam à cor dos olhos.
Mas o homúnculo de bigodes assanhados seguia outra lógica de represália. Limitou-se a afiar mais a voz para recalcitrar:
- Se torna a falar-me na família, parto-lhe as ventas. Ouviu, seu animal? As ventas!
O outro riu com escárnio alto e bem silabado:
- Atreva-se... Até o fazia em açorda, seu alarve!
E então, os dois inimigos, de comum acordo, tranquilamente coléricos, serenamente ofegantes, repousadamente furiosos e impiedosamente sentados diante um do outro, iniciaram um combate singular, trémulo de palavras de furor, onde ferviam os socos de hipótese, as pontapés de teoria, as cabeçadas de abstracção e as rasteiras de quimera, num increpar de medo vociferante, óptimo para desenvolver os músculos da língua.
O elevador pusera-se, há muito, em movimento com estardalhaço vagaroso e os dois duelistas precisavam agora de gritar mais, de apregoar quase, para se ouvirem, num esganiçar de ódios inúteis:
- Até lhe comia os fígados, seu malandro! Os fígados, ouviu?
Mas não. Não comia e era pena. Que bom, se aquele senhor de bigodinho irritado começasse a devorar, ali mesmo diante de toda a gente, o fígado cru do rival, em vez daquele duelo absurdo... nas nuvens da prudência... só sons de chanfalhos sem lâminas... só murros de imaginação... só dentadas metafísicas...
A viagem aproximava-se do fim, e os dois adversários, embora continuassem a atirar epítetos às caras um do outro, mal conseguiam destrinçar-lhes um sentido qualquer, em virtude do estridor das rodas.
Foi então que aconteceu o inevitável.
Ouviu-se o grito:
- Cala a boca, urso!
O eterno grito anónimo, gaiato e lisboeta que ora sai das bocas das pedras das ruas, ora das bancadas do Coliseu, ora das estrelas.
Desta vez, incendiou a voz dum rapazola, loiraço e picado das bexigas, que mal se podia mexer, atabafado na plataforma traseira.
- Cala a boca, urso!
O homúnculo de olhos assomadiços voltou-se num repelão de rancor sacudido:
- Quem foi a grandessíssima cavalgadura que relinchou, para eu lhe amolgar os focinhos?
Emudecimento geral. Resposta, nem uma nem duas. O próprio loiraço, de olhos tão desafiantes, deixou-se escorregar para o alçapão do silêncio.
E, então, o elevador parou. Os passageiros começaram a sair.
Primeiro este... depois aquele... todos, em suma, depressa esquecidos dos dois galos de esporões teóricos.
O bexigoso loiro foi o último a descer, mas vissem-no agora, já diferente, já herói, já desmedido de audácia, já pimpão, a rosnar em confidência para um amigo:
- Os camelos só têm paleio, paleio e mais nada... Se fosse comigo, dava-lhes uma chulipa que até voavam.
E, heróico até ao paroxismo, pregou um pontapé no rabo do vento!

Largo da Anunciada. Árvores. Uma porta de igreja. Automóveis. E, de repente, diante dos olhos, esta tabuleta:

ANTIGA ERVANÁRIA
Casa fundada em 1793

Fundada em 1793?... Noventa e três? Data da viragem na história do mundo. Revolução francesa. Terror. Guilhotina. San-Just a clamar do alto da tribuna da Convenção: “a felicidade é uma ideia nova!” Batalha de Fleurus. “Viva a República!” Lágrimas nos olhos. As tropas da revolução estoiraram as fronteiras ao som da Marselhesa. A Europa levanta-se a cantar, bêbada de morte e de vida!… E entretanto, em Lisboa, fundava-se uma Ervanária para vender ingredientes ressumantes de vapor de água, mandésios, amavios, tisanas de ervagens colhidas à meia-noite nos cemitérios, cidreiras, tília (brandura dos nossos costumes) numa civilização de chazinhos fumegantes, beberagens, delíquios, flatos, enxaquecas, teorias, estorvos, molezas, melindres, gritinhos, medo do papão. Chatice...


Helena P.
Retrato (ao meu Pai)
Helena Policarpo















Ele é um espaço grande
do imperfeito a magia,
um vasto círculo dançante
Ao som de música amante
Qual Brueghel
que exibia
No contraponto do nu
Que desordenados panos cobria.
Por aqui vou, por aqui fugia
Mesmo túnel
Mesmo rio
Ambivalência da sede
que fonte desconhecia.

Se eu pudesse agarrar-lhe
a lógica de astro errante
Em minha mão afagá-lo

Por certo que queimaria
Ainda que em negação
Da estrada que nos unia.

Mila
Meu Amigo Canguru
Ziraldo

















António
Poema de Cinza
António Bôto de "Canções"
















Poema de Cinza
À memória de Fernando Pessoa

Se eu pudesse fazer com que viesses
Todos os dias, como antigamente,
Falar-me nessa lúcida visão -
Estranha, sensualíssima, mordente;
Se eu pudesse contar-te e tu me ouvisses,
Meu pobre e grande e genial artista,
O que tem sido a vida - esta boemia
Coberta de farrapos e de estrelas,
Tristíssima, pedante, e contrafeita,
Desde que estes meus olhos numa névoa
De lágrimas te viram num caixão;
Se eu pudesse, Fernando, e tu me ouvisses,
Voltávamos à mesma: Tu, lá onde
Os astros e as divinas madrugadas
Noivam na luz eterna de um sorriso;
E eu, por aqui, vadio de descrença
Tirando o meu chapéu aos homens de juízo...
Isto por cá vai indo como dantes;
O mesmo arremelgado idiotismo
Nuns senhores que tu já conhecias
- Autênticos patifes bem falantes...
E a mesma intriga: as horas, os minutos,
As noites sempre iguais, os mesmos dias,
Tudo igual! Acordando e adormecendo
Na mesma cor, do mesmo lado, sempre
O mesmo ar e em tudo a mesma posição
De condenados, hirtos, a viver -
Sem estímulo, sem fé, sem convicção...
Poetas, escutai-me. Transformemos
A nossa natural angústia de pensar -
Num cântico de sonho!, e junto dele,
Do camarada raro que lembramos,
Fiquemos uns momentos a cantar!

Por causa deste poema a Cristina lembrou-se do seguinte:

A propósito da publicação de 3 livros de 3 autores, Raúl Leal (Sodoma divinizada), António Botto (Canções) e Judith Teixeira (Decadência), alguns estudantes de Lisboa sentindo-se ofendidos com o teor dos mesmos, resolveram saquear as livrarias e apreender as obras, levá-las ao governo civil e queimá-las. Sim, foi no séc. XX, na terra dos "brandos costumes". Fernando Pessoa saiu em defesa dos escritores e Marcelo Caetano dos estudantes. Cada um marca o seu caminho.

Artigo de Marcelo Caetano de 1926 onde relata o seu modo de ver o que aconteceu. O artigo tem a grafia da época:

"Têm ultimamente aparecido nas livrarias [...] vários livros obscenos. Houve já uma inundação parecida, aqui há uns anos, quando um tal Sr. Raúl Leal publicou um opúsculo intitulado Sodoma Divinizada, que nas montras era ladeado pelas Canções dum tal António Bôto e por um livro de grande formato intitulado Decadência, duma desavergonhada chamada Judit Teixeira. A intervenção dos estudantes de Lisboa pôs cobro a êste estado de coisas com grande indignação do Sr. Júlio Dantas e de vários outros impagáveis bípedes, catedráticos e não catedráticos, académicos e não académicos. Êle há cada um! O facto é que o Leal e o Bôto e a Srª Judit Teixeira foram todos para o Govêrno Civil onde, sem escolha, se procedeu à cremação daquela papelada imunda, que empestava a cidade. "

E agora a carta de Álvaro de Campos a defender os escritores:

AVISO POR CAUSA DA MORAL

Quando o público soube que os estudantes de Lisboa, nos intervalos de dizer obscenidades às senhoras que passam, estavam empenhados em moralizar toda a gente, teve uma exclamação de impaciência. Sim — exactamente a exclamação que acaba de escapar ao leitor...

Ser novo é não ser velho. Ser velho é ter opiniões. Ser novo é não querer saber de opiniões para nada. Ser novo é deixar os outros ir em paz para o Diabo com as opiniões que têm, boas ou más — boas ou más, que a gente nunca sabe com quais é que vai para o Diabo.

Os moços da vida das escolas intrometem-se com os escritores que não passam pela mesma razão porque se intrometem com as senhoras que passam. Se não sabem a razão antes de lha dizer, também a não saberiam depois. Se a pudessem saber, não se intrometeriam nem com as senhoras nem com os escritores.

Bolas para a gente ter que aturar isto! Ó meninos: estudem, divirtam-se e calem-se. Estudem ciências, se estudam ciências; estudem artes, se estudam artes; estudem letras, se estudam letras. Divirtam-se com mulheres, se gostam de mulheres; divirtam-se de outra maneira, se preferem outra. Tudo está certo, porque não passa do corpo de quem se diverte.

Mas quanto ao resto, calem-se. Calem-se o mais silenciosamente possível.

Porque há só duas maneiras de se ter razão. Uma é calar-se, que é a que convém aos novos. A outra é contradizer-se, mas só alguém de mais idade a pode cometer.

Tudo mais é uma grande maçada para quem está presente por acaso. E a sociedade em que nascemos é o lugar onde mais por acaso estamos presentes.

Europa , 1923.






Ana F.



No princípio criou Deus o céu e a terra
(Génesis 1: 1)

Criou, pois, Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou.
(Génesis 1: 27)

Em 1858 Charles Darwin revoluciona o mundo com a teoria da selecção natural




Ana V.
La creación del hombre in Cuando el hombre es su palabra y otros cuentos (pp. 214-215)
Nicolás Buenaventura Vidal















Este conto delicioso pode ser lido online aqui, ou podem ouvi-lo contado pelo próprio autor.




Rosa
Três velhinhas
Popular


Três velhinhas estavam em casa
Diz uma: - estou com a vassoura na mão e não me lembro se já varri ou se ainda ia varrer!
Diz outra: - xi... eu estou de camisa, mas não sei se acordei agora ou se estava para ir dormir
A terceira bate três vezes na madeira e diz: - credo! espero nunca ficar como estas duas!... esperem só um bocadinho... vou ver quem bateu à porta!


Fernando

duas citações...



a vantagem de se ter uma péssima memória é que uma pessoa pode rir-se muitas vezes com as mesmas coisas (Nietzsche)

quem não tem boa memória arranja uma de papel (Gabriel Garcia Marquez)







... e um teste
Siga as instruções e responda as perguntas uma de cada vez MENTALMENTE e tão rápido quanto possível mas não siga adiante até ter respondido a anterior. E se surpreenda com a resposta!!!

Agora, responda uma de cada vez! Quanto é:

15+6

3+56

89+2

12+53

75+26

25+52

63+32

Sim, os cálculos mentais são difíceis realmente, mas agora é que vem o verdadeiro teste. Seja persistente e siga adiante até o fim.

Quanto é:

23+5

Rápido! Pense numa ferramenta e numa cor!

E siga adiante...














Mais um pouco...














Um pouco mais...







Pensou num martelo vermelho, não é verdade???




E porque desta vez houve não um... não dois... mas três aniversários... claro que houve festa! Parabéns ao Vasco, ao João e à Alexandra!
















Só para terminar...
Porque a memória também é feita de bons momentos, dêem um salto ao CLeVA 1.0 para um cheirinho do fado da má memória (só um cheirinho, que a bateria da máquina acabou-se... ou teria sido a memória?)

próxima sessão - 8 de novembro 2011

e o tema é:

aconselhadas leituras em grupo

fará uma leitura alternativa

voltaram os namoros livrescos



desta vez a Mila trouxe à Lena R. um muito esperado Murakami, e à Teresa um inesperado Ziraldo

próxima sessão - 25 outubro 2011

e o tema é:

aconselhadas leituras em grupo

leitura alternativa a cargo de:


2011.10.11- Inovar

Alexandra J.
Queres ouvir a minha opinião? in Contos Apaixonantes
M.E. Kerr




Cristina
Hoje falamos de inovar. Por isso vieram dois livros um pouco diferentes do habitual!



Zoom de Istvan Banyai (sem palavras)

The rabbit problem de Emily Gravett (é um calendário? um livro? um manual de instruções?)
(e para os mais habilidosos instruções para fazer pop-up's... de coelhos?)



Ana Paula
Posto de Gasolina in Trabalho Poético, Livraria Sá da Costa, Lisboa (1998), 3ª Ed.
Carlos de Oliveira





Poiso a mão vagarosa no capô dos carros como se afagasse a crina dum cavalo. Vêm mortos de sede. Julgo que se perderam no deserto e os seu destino é apenas terem pressa. Neste emprego, ouço o ruído da engrenagem, o suave movimento do mundo a acelerar-se pouco a pouco. Quem sou eu, no entanto, que balança tenho para pesar sem erro a minha vida e os sonhos de quem passa?

Vasco
Não me sinto mudar in Cadernos de Temuco
Pablo Neruda




Não me sinto mudar. Ontem eu era o mesmo.
O tempo passa lento sobre os meus entusiasmos
cada dia mais raros são os meus cepticismos,
nunca fui vítima sequer de um pequeno orgasmo
mental que derrubasse a canção dos meus dias
que rompesse as minhas dúvidas que apagasse o meu nome.
Não mudei. É um pouco mais de melancolia,
um pouco de tédio que me deram os homens.

Não mudei. Não mudo. O meu pai está muito velho.
As roseiras florescem, as mulheres partem
cada dia há mais meninas para cada conselho
para cada cansaço para cada bondade.

Por isso continuo o mesmo. Nas sepulturas antigas
os vermes raivosos desfazem a dor,
todos os homens pedem de mais para amanhã
eu não peço nada nem um pouco de mundo.

Mas num dia amargo, num dia distante
sentirei a raiva de não estender as mãos
de não erguer as asas da renovação.

Será talvez um pouco mais de melancolia
mas na certeza da crise tardia
farei uma primavera para o meu coração.

Vitória
Excertos do capítulo "O cachucho" in A maratona de Nova Iorque, Crónica de um corredor acidental
António Goucha Soares




O Cachucho
Entretanto, recebi finalmente o novo cronómetro. Abri a caixa, com um misto de entusiasmo, e receio. Tirei do seu interior um relógio enorme, formato rectangular, com um perímetro maior do que a face superior do meu pulso. Um verdadeiro cachucho, […].
O manual de instruções impressionava pelo volume. Decidi ler apenas o guia rápido de iniciação. Ao cabo de uma hora consegui conectar todos os instrumentos necessários para carregar a bateria. E no dia seguinte saí com ele para treinar.

A iniciação matinal do aparelho também era caprichosa. O relógio media a distância, porque dispunha de um sistema de GPS. Para o fazer, porém, precisava de localizar o satélite. Para tanto, tinha que estar parado, numa zona sem grandes edifícios em torno. E, com o passar do tempo, percebi também que seria melhor sem nuvens.
Mas o que verdadeiramente me fazia embirrar com o aparelho era a falta de leitura clara dos batimentos cardíacos.

Dois dias antes da meia maratona do centenário da República fui levantar o respectivo dorsal. À saída do local, deparei com o stand do representante da marca do meu novo aparelho. «Peço desculpa, posso pedir uma informação.» «Diga.» «Comprei um 305 há pouco tempo, mas o relógio não permite visualizar os batimentos cardíacos.» «Como assim?»

O senhor foi buscar um aparelho idêntico, começou a manejá-lo com destreza, e colocou essa função no mostrador. «Pode mostrar-me como se faz.», solicitei. «Vai aqui, carrega ali, depois procura isto, a seguir aquilo, faz enter, depois carrega na tecla mode, e por ali fora.» De forma cortês, pedi que repetisse o procedimento desde o início, e tomei nota das indicações num pedaço de papel.
Mais animado, voltei para casa e fiz-me à aventura. Fui seguindo passo a passo as explicações recebidas, e consegui colocar a informação dos batimentos cardíacos no visor. Em seguida, descobri que o aparelho tinha três modos diferentes de indicações no visor, sendo que cada um deles poderia conter quatro tipos de informação distinta, como, por exemplo, cronómetro, distância, velocidade, ritmo […] uma infinidade de coisas. Depois, seria uma questão de selecionar os 12 tipos de informação desejada, sendo que a escolha se realizava entre uma imensidão absurda de opções, onde suspeito que seria mesmo possível identificar o contacto da atleta mais próxima.

João
Inovação
João Morais



-   Ideia

-  Novidade

O  -  Organização

V  -  Vanguarda

A   - Actividade

Ç  -  Conhecimento

à -  Aparecimento

O  -  Original

Carmen
Inovar
Carmen Ezequiel





Invenção!

Novidade!

Oportunidade!

Verdade!

Autonomia!

Resultados!


    
INOVAR…
Invenção: Viver não é necessário. Necessário é criar. (Fernando Pessoa)

Novidade: É pena a gente abandonar tudo aquilo com que viveu e a que estava habituado! Mas que se há-de fazer? É preciso, também, a gente habituar-se ao que é diferente. (Leão Tolsoi)

Oportunidade: Quando os ventos de mudança sopram, umas pessoas levantam barreiras, outras constroem moinhos de vento. (Provérbio chinês)

Verdade: Tu vês as coisas tal qual são e perguntas: “porquê?”. Eu vejo as coisas como nunca foram e pergunto: “porque não?” (Bernard Shaw)

Autonomia: Somos, com efeito, alguma coisa do que dizemos que somos, mas somos muito mais aquilo que fazemos. (Taborda de Vasconcelos)

Resultados: Trabalhar a imaginação é tomar atenção ao mundo que nos rodeia e querer descobrir o sentido das coisas. É não passar pela vida distraidamente. (Maria Alberta Meneres)



Rosa
Nunca te detenhas
Madre Teresa de Calcutá




"Enquanto estiveres vivo, sente-te vivo.
Se sentires saudades do que fazias, volta a fazê-lo.
Não vivas de fotografias amareladas...
Continua, quando todos esperam que desistas.
Não deixes que enferruje o ferro que existe em ti.
Faz com que em vez de pena, tenham respeito por ti.
Quando não conseguires correr através dos anos, trota.
Quando não conseguires trotar, caminha.
Quando não conseguires caminhar, usa uma bengala.
Mas nunca te detenhas."

Cecília
Recomeçar
Paulo Roberto Gaefke (a explicação de porque se atribui a Drummond de Andrade aqui)



Não importa onde você parou,
em que momento da vida você cansou,
o que importa é que sempre é possível
e necessário "Recomeçar".

Recomeçar é dar uma nova
chance a si mesmo.
É renovar as esperanças na vida
e o mais importante:
acreditar em você de novo.

Sofreu muito nesse período?
Foi aprendizado.

Chorou muito?
Foi limpeza da alma.

Ficou com raiva das pessoas?
Foi para perdoá-las um dia.

Sentiu-se só por diversas vezes?
É por que fechaste a porta até para os outros.

Acreditou que tudo estava perdido?
Era o início da tua melhora.

Pois é!
Agora é hora de iniciar,
de pensar na luz,
de encontrar prazer nas coisas simples de novo.

Que tal um novo emprego?
Uma nova profissão?
Um corte de cabelo arrojado, diferente?
Um novo curso,
ou aquele velho desejo de apender a pintar,
desenhar,
dominar o computador,
ou qualquer outra coisa?

Olha quanto desafio.
Quanta coisa nova nesse mundão
de meu Deus te esperando.

Tá se sentindo sozinho?
Besteira!
Tem tanta gente que você afastou
com o seu "período de isolamento",
tem tanta gente esperando apenas um
sorriso teu para "chegar" perto de você.

Quando nos trancamos na tristeza nem
nós mesmos nos suportamos.
Ficamos horríveis.
O mau humor vai comendo nosso fígado,
até a boca ficar amarga.

Recomeçar!
Hoje é um bom dia para começar
novos desafios.

Onde você quer chegar?
Ir alto.
Sonhe alto,
queira o melhor do melhor,
queira coisas boas para a vida.
pensamentos assim trazem para nós
aquilo que desejamos.

Se pensarmos pequeno,
coisas pequenas teremos.

Já se desejarmos fortemente o melhor
e principalmente lutarmos pelo melhor,
o melhor vai se instalar na nossa vida.

E é hoje o dia da Faxina Mental.

Joga fora tudo que te prende ao passado,
ao mundinho de coisas tristes,
fotos,
peças de roupa,
papel de bala,
ingressos de cinema,
bilhetes de viagens,
e toda aquela tranqueira que guardamos
quando nos julgamos apaixonados.
Jogue tudo fora.
Mas, principalmente,
esvazie seu coração.
Fique pronto para a vida,
para um novo amor.

Lembre-se somos apaixonáveis,
somos sempre capazes de amar
muitas e muitas vezes.
Afinal de contas,
nós somos o "Amor".

Porque sou do tamanho daquilo que vejo,
e não do tamanho da minha altura

Fernando Pessoa / Alberto Caeiro

Delfina
O Barómetro in StoryTelling - a magia das palavras
Gabriel Garcia de Oro




O Barómetro

Há algum tempo, recebi um telefonema de um colega. Estava prestes a dar um zero a um aluno pela resposta que tinha dado a um problema de física, ainda que este afirmasse perentoriamente que a sua resposta estava absolutamente correta. Professores e alunos concordaram em pedir a opinião de alguém imparcial e fui eu o escolhido.
Li a pergunta do exame, que dizia: “Demonstre como é possível determinar a altura de um edifício com a ajuda de um barómetro.”
O aluno tinha respondido:
“Leva-se o barómetro até ao telhado do edifício e ata-se a uma corda muito comprida. Atira-se até à base do edifício, marca-se a corda quando o barómetro atingir o chão e mede-se. O comprimento da corda é igual à altura do edifício.”
Realmente, o aluno tinha colocado um sério problema com a resolução do exercício, porque tinha respondido à pergunta de forma correta e completa, mas a resposta não confirmava que o estudante tivera esse nível.
Sugeri que dessem outra oportunidade ao aluno. Concedi-lhe seis minutos para que me respondesse à mesma pergunta mas, desta vez, com a advertência de que a resposta teria de demonstrar os seus conhecimentos de física.
Tinham passado cinco minutos e o aluno ainda não tinha escrito nada. Perguntei-lhe se queria ir-se embora, mas respondeu-me que tinha muitas respostas para o problema. A sua dificuldade era escolher a melhor de todas.
Pedi-lhe desculpa por tê-lo interrompido e mandei-o continuar.
No minuto que lhe sobrava, escreveu a seguinte resposta: “ Pega-se no barómetro e atira-se ao chão desde o telhado do edifício, calcula-se o tempo da queda com um cronómetro. Depois, aplica-se a fórmula h=2gr2. Assim obtém-se a altura do edifício.”
Então, perguntei ao meu colega se o aluno se poderia retirar.
Deu-lhe a nota mais alta.
Depois de sair da sala, voltei a encontrar-me com o aluno e pedi-lhe que me dissesse quais eram as suas outras respostas à pergunta.
- Bom - respondeu. – Há muitas maneiras. Por exemplo, pega-se no barómetro num dia de sol e mede-se a altura do barómetro e o comprimento da sua sombra. Se depois medirmos o comprimento da sombra do edifício e aplicarmos uma simples proporção, obtemos também a altura do edifício.
- Perfeito – disse-lhe. E que outra maneira?
- É um procedimento muito simples para medir a altura de um edifício, mas também serve. Neste método, pega-se no barómetro e colocamo-nos nas escadas do edifício no rés-do-chão. À medida que se vai subindo as escadas, vai-se marcando a altura do barómetro e conta-se o número de marcas até ao telhado. Ao chegar, multiplica-se a altura do barómetro pelo número de marcas e o resultado é a altura. É um método muito direto.
“Mas, se o que quer é um procedimento mais sofisticado, pode atar o barómetro a uma corda e movê-lo como se fosse um pêndulo. Se calcularmos que quando o barómetro está à altura do telhado a gravidade é zero e se tivermos em conta a medida da aceleração da gravidade ao descer o barómetro em trajetória circular pela perpendicular do edifício, da diferença destes valores, e aplicando uma simples fórmula de trigonometria, poderíamos calcular, sem dúvida, a altura do edifício.
“Neste mesmo estilo de sistema, ata-se o barómetro a uma corda e atira-se do telhado para a rua. Usando-o como um pêndulo, pode calcular-se a altura, medindo o seu período de precessão.
“Enfim, existem muitas outras maneiras. Provavelmente, a melhor será pegar no barómetro e bater com ele na porta da casa do porteiro. Quando ele abrir, dizer-lhe: “Senhor porteiro, tenho aqui um bonito barómetro. Se me disser a altura deste edifício, ofereço-lho.”
Nessa altura, perguntei-lhe se não conhecia a resposta convencional ao problema. (A diferença de pressão marcada por um barómetro em dois lugares diferentes indica-nos a diferença de altura entre ambos os lugares.)
Respondeu que evidentemente que a conhecia, mas que, ao longo dos seus estudos, os seus professores tinham tentado ensinar-lhe a pensar.
O aluno chama-se Niels Bohr, físico dinamarquês, prémio Nobel da Física em 1922, mais conhecido por ser o primeiro a propor o modelo de átomo com protões e neutrões e os eletrões que o rodeiam. Foi, em suma, um inovador da teoria quântica.
Gabriel Garcia de Oro
Aqui uma versão da mesma história

E para saber mais um pouco sobre Niels Bohr, a quem a mesma tem sido atribuída (sendo Rutherford o avaliador)


Fernando

O vermelho e o verde in  A única real tradição viva - Antologia da poesia surrealista portuguesa
João Artur Silva e Mário-HenriqueLeiria



- De que cor é o vermelho?
- É verde.

- Quem é o teu pai?
- É o revisor do comboio para a lua.

-O que é a loucura?
- É um braço solitário sorrindo para os meninos.

- Quem é Deus?
- É um vendedor de gravatas.

- Como é a cara dele?
- É bicuda, com uma maçaneta na ponta.


Ana Rita
Mulheres
Ana Rita Carraça


Quando uma mulher despe o preconceito do vestido
Desamarra em si o seu desejo voraz de um sabor desconhecido
Encontrar-se defronte do inevitável é apenas ócio da vontade
Procurar pela chama que a alimenta é uma banalidade
Quando uma mulher descalça os sapatos
Procura em si todos os porquês dos seus actos
Com uma fragilidade apenas poética
O corpo descalço muda toda a dialéctica
Quando uma mulher chama por ti na escuridão deserta
Encontra-se com ela na sua obra mais aberta
Desprotegida de paredes
Chama o teu nome e nunca conheceu as tuas redes
Quando uma mulher parece louca
Não tenhas paciência pouca
Aprende o remédio da saudade
E faz o teu melhor com sinceridade
Quando uma mulher for aparentemente nefasta
Não penses que é a única porque a obra é vasta
Qualquer uma nada mais tem do que amor
E quando não tem o que tem, a vida é um terror
Quando uma mulher vive de forma contente
Não a penses assim sempre, sorridente
Será preciso mais do que uma escova de dentes
Para fazer crescer as tão esperadas sementes
Quando uma mulher estiver confusa
Não lhe perguntes que perfume usa
Dá-lhe a conhecer o teu cheiro cruel
E será como uma abelha desfeita em mel
Quando uma mulher fechar os olhos
Não abuses com as mãos entre folhos
Diz-lhe que as mãos são para sentir
Depois pergunta-lhe se o coração está a sorrir!
Quando uma mulher fizer papel de esquecida
Pergunta-lhe se não é tua conhecida
Os primeiros encontros são sempre boas memórias
E talvez mais tarde… essas….
Serão as tuas verdadeiras glórias!

Daniel
O Recruta (excerto)
Robert Muchamore



Paula
A História do Rei Transparente (excerto)
Rosa Montero



Helena P.
Ritmos in Minha Senhora de Quê, Lisboa: Quetzal Editores, 1999
Ana Luisa Amaral



E descascar ervilhas ao ritmo de um verso:
a prosódia da mão, a ervilha dançando
em redondilha.

Misturar ritmos em teia apertada: um vira
bem marcado pelo jazz, pas
de deux: eu, ervilha e mais ninguém

De vez em quando o salto: disco sound
o vazio pós-moderno e sem sentido

Ah! hedónica ervilha tão sozinha
debaixo do fogão!

As irmãs recuperadas ainda em anos 20
o prazer da partilha: cebola, azeite
blues desconcertantes, metamorfose em
refogados rítmicos

(Debaixo do fogão
só o silêncio frio)

Teresa e Helena R.
Como nasceu o alfabeto in Just So Stories / Histórias Assim Mesmo (adaptado)
Rudyard Kipling







Taffy e o seu pai vivem numa aldeia Neolítica. Um dia, depois de uma manhã de pescaria, almoçavam à sombra das bétulas. Taffy decidiu fazer uma surpresa ao pai.

- Faz um barulho qualquer, pai!
- AH!
- Pareces uma carpa com a boca aberta. Vou fazer um desenho… as carpas andam no fundo da lagoa a comer no lodo e têm bigodes assim.


- Para que serve isso, Taffy?
- Não vês? Se eu desenhar a carpa de boca aberta no fumo que há ao fundo da caverna vais-te lembrar que quer dizer AH e vai ser como se eu tivesse saltado do escuro e te assustasse! Oh… mas eu não sei desenhar bem…
- Deixa estar, basta desenhares assim a boca aberta com os bigodes e eu já sei o que é


- Agora faz outro som!
- OH
- Esse é fácil! Pões a boca toda redonda como um ovo ou uma pedra… podemos usar uma pedra…
- Mas nem sempre encontramos ovos ou pedras. Podemos fazer um desenho redondo como um ovo

- Ena! Tantas imagens de sons… faz mais sons pai
- SSSSSSSS
- Esse é fácil
- erm? Quê? Eu queria dizer que estava a pensar e não queria ser incomodado
- Mas é um barulho à mesma… o barulho que as cobras fazem! Vou desenhar o barulho da cobra.


Assim quando estiveres a arranjar as lanças podes desenhar uma cobra na parede e eu sei que não posso fazer barulho.
- Acho que descobriste a coisa mais maravilhosa desde que a nossa tribo passou a usar dentes de tubarão em vez de sílex nas pontas das lanças. Encontrámos o maior segredo do mundo!
- Porquê?
- Vou-te mostrar. Como se diz água na língua Tegumai?
- YA
- Sim, YA quer dizer água e rio. E como se diz a água má que dá febres se a beberes? Água Preta ou água dos pântanos?
- OA, claro
- Agora repara… e se eu deixasse este sinal ao pé da poça dos castores



- ora ovo e boca de carpa – O- A … dois sons misturados! OA ! Água má!!!
- e eu nem preciso de estar perto da água! Posso estar muito longe… a caçar e ainda assim ---
- Era como se estivesses ao pé de mim e dissesses: “Sai daí Taffy, ou ficas com febre” E tudo com uma boca de carpa e um ovo redondo!! Vamos depressa… vamos contar à mãe!!!


Alexandra F.
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades in Lírica Completa II
Luís de Camões




Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E, em mim, converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto,
Que não se muda já como soía.

Aqui fica a versão cantada pelo José Mário Branco



(e já agora digam lá se aqui no CLeVA não se lê lindamente!)

Ana V. e Ana F.
Os olhos grandes da princesa pequenina
Ondjaki + Yara Kono

O ano em que o calendário avariou
Manuel António Pina + Danuta Wojciechowska



O ANO EM QUE O CALENDÁRIO AVARIOU
Manuel António Pina

Foi numa noite de Natal.
Estávamos em maio mas não fazia mal, tinha havido uma avaria no calendário e naquele ano saiu tudo ao contrário: o Natal em maio, a primavera em novembro, o 1.º de abril a 22 de setembro.
Eu que tenho mais de 100 anos não me lembro de ter feito tanto calor como em dezembro.
Houve semanas com cinco dias, outras inteiras, uma em julho teve 16 segundas-feiras!
Até houve a semana dos nove dias.
Muitas promessas foram naquele ano cumpridas!
Foi um ano tão maluco,
tão completamente bissexto,
que para muitos serviu de pretexto
para trocar as voltas ao calendário
e festejar todos os dias o aniversário.
Naquele ano espantoso
cada um podia ter à vontade
as suas manias
porque todos os dias
eram todos os dias.
Eu que não sou menos que os demais, naquele ano tive vinte natais.


OS OLHOS GRANDES DA PRINCESA PEQUENINA

Ondjaki

Era uma vez uma princesa muito, muito pequenina. Um dia descobriu que, apesar de ter os olhos enormes e muito bonitos, não conseguia chorar.
– Como assim? – perguntou-lhe um dia a sua avó.
– Assim mesmo – respondeu a princesa. – Não sei chorar. Não tenho lágrimas. Eu sei que as pessoas quando choram têm lágrimas. Até sei que as lágrimas são salgadas.
– Não te preocupes, minha querida. Um dia vai acontecer.
Quando se magoava, a princesa sentia dor e até chorava, mas dos seus olhos não saía nenhuma lágrima.
E passaram-se muitos anos. A princesa, embora tivesse crescido um pouco, ainda era pequenina. E ainda tinha os olhos enormes e muito bonitos.
Certa manhã, foi passear a cavalo. Quando regressou a casa, estava um homem a tocar piano.
Era um pianista muito conhecido, amigo do seu pai, e tocava o piano quase de olhos fechados.
A princesa sentou-se num canto da sala, no chão. E depois de olhar para as mãos do homem, também fechou os seus olhos.
E deixou-se estar assim, a ouvir a música. Os seus dedos mexiam-se devagarinho como se fosse ela a tocar as teclas do piano. O seu corpo vibrava por dentro, ora de tristeza, ora de alegria.
Quando a música terminou, a princesa abriu os olhos. Viu o pianista quieto, ainda de olhos fechados. E viu a sua avó a olhar para ela.
– Tens o teu vestido molhado… Mas não chove dentro de casa – disse a avó, sorrindo.
– Então quer dizer…
– Quer dizer que são lágrimas.
– A música… - sorriu a pequena princesa. – A música ensinou-me a ter lágrimas nos olhos…
– É porque a música te emociona – disse a avó, limpando os braços da menina, que também tinham lágrimas sobre eles.
– E o que são as emoções? – perguntou a princesa.
A avó demorou muito tempo a responder. Foi agradecer ao pianista e acompanhá-lo até à porta do castelo. E depois regressou com calma.
– As emoções são coisas estranhas que sentimos em alguns momentos da vida. Estão sempre dentro de nós mas só por vezes aparecem.
– Como a alegria, a felicidade, a tristeza?
– Sim. Também o espanto, a comoção e todos os pensamentos que nos fazem sonhar mesmo quando estamos acordados.
– Então não há nada de errado com os meus olhos? – perguntou a princesa.
– Claro que não, minha linda princesa.
Era uma vez uma princesa muito, muito pequenina. E que um dia descobriu que os seus olhos, enormes e muito bonitos, também serviam para chorar.

Mila
Em busca de um mundo melhor (excerto)
Karl Popper




António S.
Tentações do Apocalipse in Poesia III
Jorge de Sena


Não é de poesia que precisa o mundo.
Aliás, nunca precisou. Foi sempre
uma excrescência escandalosa que
se lhe dissesse como é infame a vida
que não vivamos para outrem nele.
E nunca, só de ser, disse a poesia
uma outra coisa, ainda quando finge
que de sobreviver se faz a vida.
O mundo precisa de morte. Não da morte
com que assassina diariamente quantos teimam
em dizer-lhe da grandeza de estar vivo.
Nem da morte que o mata pouco a pouco,
e de que todos se livram no enterro dos outros.
Mas sim da morte que o mate como um percevejo,
uma pulga, um piolho, uma barata, um rato.
Ou que a bomba venha para estas culpas,
se foi para isso que fizemos filhos.
Há que fazer voltar à massa primitiva
esta imundície. E que, na torpitude
de existir-se, ao menos possa haver
as alegrias ingénuas de todo o recomeço.
Que os sóis desabem. Que as estrelas morram.
Que tudo recomece desde quando a luz
não fora ainda separada às trevas
do espaço sem matéria. Nem havia um espírito
flanando ocioso sobre as águas quietas,
que pudesse mentir-se olhando a criação.
(O mais seguro, porém, é não recomeçar.)